As classes média e alta do Brasil estão trazendo o coronavírus junto de suas viagens (internacionais) – mas não querem abdicar da ajuda dos trabalhadores domésticos vindos das favelas. Com isso, a doença pode se alastrar rapidamente entre os mais pobres.
Por Marian Blasberg, correspondente alemã no Rio de Janeiro da revista Der Spiegel, vivendo no país desde 2014
Durante 63 anos, a empregada doméstica Cleonice Gonçalves levou uma vida no Rio de Janeiro que não interessava a mais ninguém. Ela trabalhava em um apartamento chique no bairro de praia do Leblon, onde os preços dos terrenos são mais altos do que em qualquer outro lugar do Brasil.
Lá ela limpava os banheiros e as maçanetas das portas, cozinhava e passava roupas. Quatro dias por semana ela dormia num pequeno quarto de empregada no apartamento da sua patroa. Nos fins-de-semana, ia de carro para sua casa no subúrbio em Miguel Pereira, a duas horas de distância do Leblon, onde vivia com a família numa casa não rebocada, numa estrada de cascalho.
Cleonice, que ao longo de sua vida desapareceu numa massa sem rosto de mão-de-obra barata que se deslocava de suas favelas para a cidade em ônibus e trens lotados, só virou manchete de jornal no Brasil quando morreu na terça-feira da semana passada. A sua morte aterrorizou o país.
A patroa de Cleonice, conforme foi noticiado nos jornais locais, tinha passado os dias de carnaval na Itália. No seu regresso, a senhora idosa tinha se submetido a um teste de coronavírus, mas não considerou necessário informar sua empregada sobre o fato e nem dispensar os seus serviços durante os dias em que esperava pelo resultado do teste.
As coisas continuaram como de costume até que Cleonice foi ao médico no último dia 13 de março, por sentir dores quando urinava. O médico receitou-lhe um antibiótico. Dois dias depois, ela teve dificuldade para respirar. Cleonice, que era diabética e sofria de pressão alta, foi a um hospital, mas também não encontrou lá ninguém que pudesse interpretar adequadamente o seu estado de saúde.
Cleonice Gonçalves, uma empregada doméstica, faleceu no dia 17 de março, dia em que a sua patroa recebeu o resultado positivo do seu teste. O fato de uma mulher como ela, entre todas as pessoas, ter sido provavelmente a primeira vítima do coronavírus no Rio de Janeiro, não foi apenas simbólico. É também um sinal de alarme.
Como em muitos outros países do hemisfério sul, o vírus foi disseminado no Brasil por uma classe alta e média rica, predominantemente branca, por pessoas que têm dinheiro para viajar. Não é coincidência que o Rio de Janeiro tenha relatado seus primeiros casos vindos dos ricos desfiladeiros urbanos do Leblon e de Ipanema.
Mas a grande preocupação é outra: o que acontecerá quando o vírus infectar pela primeira vez os lugares onde vivem todas aquelas pessoas que mantêm a vida na cidade, empregados domésticos como Cleonice, cozinheiros e babás, os porteiros que se sentam nas entradas das casas, os caixas dos supermercados, os garçons dos bares e restaurantes, todos os comerciantes informais e vendedores ambulantes que oferecem suas mercadorias nas calçadas?
O jornal diário “O Globo” resumiu esse medo há alguns dias em uma enorme foto de efeito, que basicamente não precisava de explicações adicionais. Mostrava um trecho da favela da Rocinha, um emaranhado sem limites de casas e cômodos interligados. Um lugar onde dezenas de milhares de pessoas vivem juntas num espaço muito pequeno.
Esta imagem não só pareceu uma mensagem apocalíptica de um futuro próximo, como também poderia ser interpretada como um pedido de ajuda na direção de um presidente que teimosamente descartou o vírus como uma “gripezinha”. O Brasil não pode ser comparado à Itália, disse Jair Bolsonaro no início desta semana. A Itália tem 200 habitantes predominantemente idosos por cada quilômetro quadrado, enquanto que o Brasil conta com 24 pessoas predominantemente jovens vivendo em cada quilômetro quadrado. É um disparate estatístico que deixa um número crescente de brasileiros balançando a cabeça, não concordando com a argumentação do presidente.
Segundo números oficiais, num lugar como a Rocinha, há quase 50 mil pessoas por quilômetro quadrado. No Complexo da Maré existem 31 mil, no Complexo do Alemão 23 mil. 1,7 milhões de pessoas vivem nas quase mil favelas do Rio de Janeiro, e as condições que existem por lá são, muitas vezes, extremamente precárias.
O Estado retirou-se de muitos desses assentamentos, que agora são controlados por milícias ou gangues de drogas. Em muitas esquinas, o lixo não recolhido está se acumulando. O esgoto flui pelos becos sob o céu aberto. Em casas onde seis ou sete pessoas partilham um quarto, o isolamento social é uma ilusão.
Nestes dias em que o Rio de Janeiro está apenas hesitantemente parando, o vírus está se alastrando nestes lugares de maneira quase desapercebida. Quatro favelas já relataram casos confirmados de corona e dezenas de casos suspeitos. Esta é uma das razões pelas quais o ministro da Saúde de Bolsonaro, Luis Henrique Mandetta, assume agora que o sistema de saúde provavelmente entrará em colapso até o final de abril.
“Se nada for feito, um tsunami vai atingir os hospitais públicos!” Isso é o que afirma o jovem Raul Santiago em uma conversa ao telefone, com uma voz bastante excitada. Raul vive com sua esposa e quatro filhos em um barraco no Complexo do Alemão. O problema, ele acredita, é a desigualdade social no Brasil. Como um homem pobre, ele pertence ao grupo de risco.
Raul Santiago questiona: “O que será dos mais necessitados que não têm poupanças e que não estão cobertos por uma rede de segurança social? É só observar o que aconteceu com a água”, diz Raul. Na verdade, este ano parece uma maldição. Em janeiro, uma sopa marrom e malcheirosa saiu da torneira em todas as partes da capital carioca, apenas porque ninguém havia notado que algas haviam contaminado a estação municipal de tratamento de esgoto. Depois, em fevereiro, choveu tanto que em algumas favelas as casas escorregaram das encostas e enterraram seus habitantes. Agora, a água da torneira está razoavelmente limpa novamente, diz Raul, mas vários dias por semana, por alguma razão, não sai água da torneira, por isso eles não podem sequer seguir a regra simples de higiene de lavar as mãos frequentemente.
O álcool gel, que faz parte do cotidiano de muitos brasileiros desde a gripe suína em 2009, agora está sendo tão difícil de encontrar que uma pequena garrafa custa uma fortuna. “Aqui em cima no nosso morro: três euros, às vezes quatro ou cinco (entre 15-25 reais)”, diz Raul.
Raul Santiago fundou um coletivo de ativistas com alguns amigos há alguns anos atrás, chamado Papo Reto, para falar sem rodeios. Ele normalmente fala em eventos sobre temas como violência ou racismo. Hoje ele tem cartazes impressos, que penduram em lugares estratégicos da favela, nas entradas ou nos lugares onde estão estacionados os mototáxis e micro-ônibus, que ainda levam muita gente para trabalhar da favela para a cidade. Entre outras coisas, eles apontam que aqueles que têm água devem recolhê-la em baldes e compartilhá-la com os seus vizinhos.
Várias vezes ao dia, o povo da comunidade de Raul corre pelos becos em um carro com alto-falante, informando as pessoas que os moradores devem evitar grandes reuniões e arejar bem suas casas. Ele diz que eles próprios estão tomando providências porque o governo está fazendo muito pouco.
Ninguém sabe exatamente quantos brasileiros trabalham em condições precárias ou quantos estão sendo demitidos hoje em dia. A questão é: Quem está cuidando dessas pessoas? O que vai acontecer com os mais necessitados, que não têm poupanças e que não estão cobertos por uma rede de segurança social? O que é que eles vão comer?
Para evitar uma emergência humanitária, a associação nacional de favelas “CUFA” publicou há alguns dias um catálogo de 14 solicitações. Dentre outras coisas, sugere-se que os habitantes das favelas recebam sabão gratuito durante toda a crise. Também que a internet seja gratuita para que as pessoas possam se informar. Citam a necessidade de apoio aos proprietários de pequenas lojas, e afirma que aqueles que são mais duramente atingidos deveriam receber regularmente pacotes de alimentos básicos.
Há alguns dias atrás, Paulo Guedes, o ministro neoliberal da economia de Bolsonaro, havia dito que os mais pobres poderiam receber 200 reais por mês, 40 euros, mas depois disso ninguém voltou a ouvir nada mais sobre essa proposta. Na sexta-feira, foi o Congresso que aumentou o montante para o equivalente a 100 euros. Enquanto isso, o próprio Bolsonaro parece se incomodar com outros assuntos. Como o pânico em seus olhos só leva a uma queda desnecessária no crescimento econômico, ele agora exige que os governadores reabram as lojas nos estados brasileiros. O trânsito deve fluir novamente, e as escolas também devem voltar ao funcionamento normal, porque crianças e jovens não pertencem ao grupo de risco, segundo ele.
Um homem como o famoso infectologista Edimilson Migowski tem dificuldade em manter a calma diante de tais afirmações. O vírus, diz ele, está se espalhando mais rápido do que muitos especialistas pensavam. O governo tem que agir agora, ou será tarde demais.
É importante focar na população mais desfavorecida. Por causa das condições de vida, diz ele, um número desproporcional de pessoas sofre de condições de saúde pré-existentes. A falta de higiene e quartos escuros ou mal ventilados significam que a proporção de pessoas que sofrem de tuberculose ou asma é cinco vezes maior nas favelas do que nos bairros mais prósperos. Há muitos diabéticos devido à má nutrição.
“Se você quer proteger essas pessoas”, diz Migowski, “então você tem que tentar isolá-las de alguma forma, mesmo que elas estejam em hotéis vazios”. Para evitar que o vírus se propague, é preciso testá-los o mais cedo possível, não só os casos graves, mas também os leves, pois não são menos contagiosos”. No fim de semana foi anunciado que a cidade está agora alugando hotéis para isolar os idosos das favelas.
O problema é que o Brasil ainda tem muito poucos testes. Os hospitais não têm máscaras e luvas. No Rio, bilhões de cortes no sistema público de saúde fizeram com que os hospitais da cidade perdessem 1.051 leitos de terapia intensiva somente nos últimos dois anos. A força de trabalho de centenas de clínicas que oferecem tratamento inicial gratuito foi reduzida durante a crise econômica desde 2014 ao ponto de atingir agora apenas a metade da população. Em alguns desses hospitais, os trabalhadores sem a qualificação necessária estão mantendo as operações porque inúmeros médicos pediram demissão depois de que seus salários não foram pagos durante vários meses.
Estes são os lugares que pessoas como Cleonice Gonçalves visita quando estão doentes. Eles já estavam trabalhando demais antes mesmo do coronavírus aparecer.
Hoje, as barracas estão sendo erguidas às pressas em frente de muitos destes postos de saúde para separar casos de coronavírus dos outros pacientes. Em vários lugares da cidade, soldados estão montando hospitais de campanha, mas Raul Santiago, o ativista do Complexo do Alemão, ainda está se preparando para o pior. “Na melhor das hipóteses, teremos cenas como aquelas na Itália”, diz ele.
Na noite seguinte à entrevista, um toque de recolher noturno entra em vigor em algumas favelas da cidade. Em alto-falantes e no WhatsApp, as gangues da droga anunciam: “Só queremos o melhor para o nosso povo. Se o governo não puder fornecer segurança, o crime organizado o fará”.
Fonte: artigo da revista alemã Der Spiegel de 28/03/20.
Traduzido com a versão gratuita do tradutor – www.DeepL.com/Translator, adaptação e correção do texto por Sandra Santos, 29/03/20, 17:00 horas
P.S.- Uma nota de agradecimento à minha irmã Renata pela sugestão do uso do tradutor DeepL! Ainda não é perfeito, mas é muito bom e ajudou bastante na tradução inicial.
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